por Ana Weiss
Curadores costumam se queixar muito da participação de herdeiros na organização de legados na arte. Isso não parece acontecer com Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da pintora de quem herdou também o nome, e responsável pela administração do legado da artista-símbolo do Modernismo. A exposição Tarsila Popular, em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Masp), reúne 120 obras de fases diferentes da artista. Uma articulação hercúlea entre instituições do mundo inteiro, o museu paulista e os outros mais de quarenta herdeiros que têm direito ao legado da criadora do Abaporu.
À frente de um espólio avaliado como o mais valioso do país, há vinte anos Tarsilinha participa da montagem de exposições, acompanha de perto as ações de royalties que ajudam a financiar as (muitas) cessões de imagens para livros didáticos e outros materiais educacionais. No intervalo, vasculha pelos grandes armários das fazendas da família Amaral atrás de relíquias, como a foto de uma funcionária da fazenda que inspirou a criação de A Negra. Das gavetas e conversas de parentes mais velhos, reuniu evidências que levaram-na a acreditar que o Abaporu é, na realidade, um autorretrato feito pela tia-avó fez para presentear o marido, o escritor Oswald de Andrade, que escreveu o Manifesto Antropofágico em cima da tela pertencente, hoje, ao Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires, o Malba – mas que voltou ao Brasil para a mostra do Masp.
A seguir, a entrevista concedida pela herdeira a VEJA:
A crítica concorda com a sua tese sobre a origem do Abaporu? Nas escolas se ensina que a figura é a criatura do folclore que Tarsila evocou para resumir o ideário antropofágico. A Aracy Amaral (uma das mais importantes críticas da obra da artista) discordou por muito tempo, mas agora ela começa a considerar a minha tese. Tarsila pintou o quadro no auge da paixão por Oswald. O cabelo é exatamente o dela na época e a perspectiva é de alguém que se retrata nu em frente a um espelho inclinado, que era exatamente o que ela tinha em seu ateliê. Quando ele foi exposto pela primeira vez ainda não se chamava Abaporu – esse nome foi dado depois pelo Oswald e pelo (também escritor modernista) Raul Bopp. Tarsila chamou a obra de Nu, inclusive é esse o nome que consta no registro de sua primeira exposição. Era uma fase muito sensual da produção dela
Houve alguma informação nova, para que a possibilidade passasse a ser considerada pela crítica e incorporada à história da arte? Sim. Repare no pé da figura da tela. O segundo dedo é desproporcionalmente grande, muito maior que o primeiro. Olhei muitas, mas muitas fotografias com a Tarsila para tentar saber como eram seus pés, mas ela vivia de sapatos fechados, quase desisti. No entanto, minha irmã, que chegou a conviver com ela até a adolescência (eu não tinha 8 anos quando ela morreu), me contou que lembra exatamente desse segundo dedo grande da nossa tia-avó. Hoje eu não tenho mais dúvidas sobre a ideia original do quadro. Era uma espécie de entrega: dela mesma, para o Oswald, que foi o grande amor da vida dela. Tanto é que quando eles se separaram ela fez questão de ter a tela de volta. Ela deu um De Chirico (pintor surrealista já reconhecido na época) para ele em troca do Abaporu.
Você reconhece que existe uma supervalorização do Abaporu em relação a outras obras da artista? Sim, acho que a obra ganhou esse contorno icônico justamente por causa da sua história. Porque, se formos avaliar, a Antropofagiatem A Negra e o Abaporu dentro dele, e não tem metade dos holofotes do Abaporu sozinho.
Fonte: VEJA